17 fevereiro 2014

Uma maneira de chegar à noite




Josy é uma menina de hábitos que você talvez goste, mas não deixe que ela perceba, pois ela faria tudo às avessas só para te irritar. Ela é mesmo fascinante, gosta de experimentar, compra pelo menos uma novidade no mercado a cada mês, mas nunca se esquece de levar junto no carrinho guloseimas e ‘gordices’.



É do tipo de pessoa que tenta desenhar um novo trajeto todos os dias para alcançar a noite, desinteressada da opinião alheia para seu atos,(lá vêm a louquinha... que garota sem jeito...) costuma trocar os pés enquanto anda e cantar músicas criadas na hora sempre que não pode mudar mais nada.
Nunca deixou de oferecer suas guloseimas às crianças da rua, por vezes deixava pacotes inteiros com elas, sem provar um doce sequer, mas não deixe que ela perceba que você a admirou... ela é uma garota que não conta o bem que faz nem a si mesma.
Mas talvez o tempo corra mais rápido para quem experimenta o sabor do dia novo, sem medo que ele seja amargo, tem pessoas que aprendem a adoçá-lo, temperá-lo.
Josy teve um dia que crescer, experimentar muitas coisas que a desagradavam, coisas que insistiam em fazê-la anônima na multidão. Usar as mangas na altura certa, não podia mais sujar os cotovelos, se sentia presa em algemas... seus braços não tinham mais o mesmo alcance. Que fase aborrecida pensava ela.
Josy não traçava mais caminhos novos para suas noites, virava sempre na mesma esquina, não podia se cansar de mais, não podia se atrasar. Encontrou um mundo em que até a respiração é contada por minuto.
Num entardecer estava na rua, havia acabado de chover, ela lembrou que adorava pular poças, não pôde deixar de trocar os pés assim. Mesmo em meio as nuvens o sol se punha, num brilho alaranjado e vermelho à frente de um fundo cinza e amarelo. Achou lindo e olhou pro lado, como um cinéfilo que tenta ver a reação dos outros ao assistirem um grande filme, porém as pessoas apenas desviavam das poças, olhos fitos para baixo. Viu que aquela beleza era só sua, pelo menos naquele quarteirão. Chocou-se: chovia ouro que caia só em seus bolsos.

Questionava-se da existência da beleza que ninguém nota. Sabia que naquele mesmo horário no dia seguinte, veria uma nova beleza, novas formas e cores, talvez mais amarelo e menos cinza, um pouco mais tarde um vermelho que se torna roxo, entregando-se ao azul quase negro da noite escura...
Viu-se adulta, mas capaz de tocar novamente seu íntimo, percebeu que não devemos crescer tanto, pois quanto maiores somos, maior é a nossa dificuldades de alcançar o centro, de rever nosso âmago. Tudo isso percebeu quando olhou uma obra prima cotidiana, ignorada pelos crescidos que são incapazes de pular poças, enquanto erguem os olhos ao céu que ainda não escureceu. Voltou pouco a pouco a não dar tanta atenção ao que os outros pensam, a compartilhar guloseimas, a andar trocando passos, fazendo seu próprio caminho. Era mesmo louquinha, uma menina sem jeito. Afinal ela é o tipo de pessoa que interessa ao criador de obras primas cotidianas.

Ah, passos trocados ainda a levavam à noite e isso era tudo que importava...


10 fevereiro 2014

O Guardião


- Vamos Xavier é por aqui!
- Sim senhorita Nina, estou procurando me apressar.
- Você não é mais o mesmo, meu amigo.
- Compenso o vigor que perdi, com uma paciência quase indestrutível que adquiri.
- Graças a mim é claro. Cansou-se de tanto me acompanhar em minhas aventuras. E construiu essa paciência inabalável por tolerar minhas loucuras cotidianas.
- Não nego que estar contigo, por tantos anos, foi responsável por quem sou hoje. E bem sabes que sou agradecido, sempre agradecido.
- Bobo como sempre, isso sim Xavier. Alias, tenho uma pergunta: Quem é mais apto para discernir mudanças num outro alguém? Uma pessoa que acompanha alguém crescer como você. Ou a que vê outro envelhecer como eu?



- Antes de mais nada, tenha cuidado com estes galhos no chão. O terreno aqui é bem acidentado, podem estar podres.
- Ah sim, sim, você são meus olhos caro amigo, meus olhos! Agora me responda.
- Bem, creio que essa seja uma de suas perguntas que ocupariam um capítulo inteiro de um livro. Acredito que alguém como você vê minhas mudanças voltadas em sua maioria para o pequeno ser que acompanha, evoluindo a cada dia. Enquanto eu vejo alguém mudando em direção ao deslumbre que o mundo provoca.
- Explique-me melhor isso Xavier, antes que minha mente saia voando.
- Ah sim, vamos tentar... quando vemos alguém nascendo, nosso mundo diminui e se concentra naquela pessoinha, em como evolui, seus passos que se aceleram em corridas, mas para aquele pequeno ser é diferente: o mundo começa pequeno e cresce pouco a pouco. Vi em você uma mudança de quem faz de cada descoberta, pessoa que conhece, cada coisa que aprende, numa ampliação do próprio mundo.
- Então você quer dizer que meu mundo aumentou e o seu diminuiu?
- É o que acontece quando crescemos. Não é nada físico, você bem sabe, é aqui dentro senhorita, no coração.
- Por essas coisas meu amigo que te chamo de guardião. Você vê o mundo assim pequeno em cada detalhe, consegue perceber os perigos e me mostrar o caminho, como fez com os galhos. Eu pelo contrário, ainda tão desajeitada, faço perguntas, imagino, sonho e quase me sufoco em tantas novidades que mal posso detalhar.
- Conviver é assim mesmo Nina, é a maior riqueza que se pode construir. Cada um trazendo o melhor de si, numa doação incapaz de nos empobrecer. Hoje te guardo de tropeçar em galhos enquanto não achas tempo para contar os próprios passos, da mesma maneira que a senhorita me guarda de olhar demasiadamente para trás e contar minhas pegadas até aqui.
- Você diz que minhas perguntas ocupariam um capítulo inteiro. E suas respostas então, o que me diz? Sim, argumentos para tantos outros. Acho que no final é mais do que perceber mudanças, mas provocá-las... Sabe, gostaria de ir mais devagar agora, o que acha?
- Não posso evitar rir, senhorita. Será minha chance de conduzir a conversa?
- Bobo como sempre Xavier, bobo como sempre!

Leiam mais uma história sobre Nina e Xavier em O Guardião - Olhar para o lado